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domingo, 3 de outubro de 2010

HOJE SOU UM; E AMANHÃ OUTRO

HOJE SOU UM; E AMANHÃ OUTRO
José Joaquim de Campos Leão Qorpo-Santo

PERSONAGENS1:
Dourado, rei de...
Eleutério, seu Ministro
Matildes, a rainha
Fernando, guarda
Carlos, outro guarda
Eulália, dama do Paço
Tibúrcia, outra dama do Paço
4 Oficiais
Criado
Soldado da Guarda Imperial

ATO PRIMEIRO
Cena Primeira

REI (para o ministro) - Já deste2 as providências que te recomendei ontem sobre os indigitados para3 a nova conspiração que contra mim se forja?
MINISTRO Não me foi possível, Senhor, por em prática vossas ordens.
REI Ludibrias das ordens de teu Rei? Não sabes que te posso punir, com uma demissão, com baixa das honras, e até com a prisão!?
MINISTRO Se eu referir a V.M. as razões ponderosas que tive para assim proceder, estou certo, e mais que certo que V.M. não hesitará em perdoar-me essa que julga uma grave falta; mas em verdade não passa de ilusão em V.M.
REI Ilusão! Quando deixas de cumprir ordens minhas?
MINISTRO Pois bem. Já que V.M. o ignora, eu lhe vou cientificar das cousas, que me obrigaram a assim proceder.
REI Pois bem: refere-as; e muito estimarei que me convençam e persuadam de que assim devemos proceder.
MINISTRO Primeiramente, saiba V.M. de uma grande descoberta no Império do Brasil, e que se tem espalhado por todo o mundo cristão, e mesmo não cristão! Direi mesmo – por todos os entes da espécie humana!
REI (muito admirado) – Oh! Dizei; falai! Que descobriram – é erro!?
MINISTRO É cousa tão simples, quanto verdadeira:
1a – Que os nossos corpos não são mais que os invólucros de espíritos, ora de uns, ora de outros; que o que hoje é Rei, como V.M. ontem não passava de um criado, ou vassalo meu, mesmo porque senti em meu corpo o vosso espírito, e convenci-me, por esse fato, ser então eu, o verdadeiro Rei, e vós o meu Ministro! Pelo procedimento do Povo, e desses a quem V.M chama conspiradores – persuadi-me do que acabo de ponderar a V.M
2a – Que pelas observações filosóficas, este fato é tão verídico, que milhares de vezes vemos uma criança falar como um general; e este como uma criança. Vemos por exemplo um indivíduo colocado no cargo de presidente de uma Província; velho, carregado de serviços; com títulos, dignidades; e mesmo exercendo outros empregos de alta importância – ter medo, Senhor: não poder abrir a boca diante de um homem considerado talvez pelo Povo, sem um emprego pessoal, sem mulher, talvez mesmo sem o necessário para todas as suas despesas, finalmente um corpo habitado por uma alma. Que quer dizer isto, Senhor? Que esse sobrecarregado de cargo e dignidades humanas – é zero perante este protegido ou bafejado das dignas leis Divinas. Eu, pois, ontem estava tão acima de V.M., porque sentia em mim o dever de cumprir uma missão Divina, que me era impossível cumprir ordens humanas. Podeis fazer agora o que quiserdes!
REI Estou pasmo – com a revelação que acabo de ouvir. Se isto se verifica, estou perdido!
MINISTRO Não temais, Senhor... Todo o Povo vos ama, e a Nação vos estima; mas desejo que aprendais a conhecer-vos, e aos outros... homens. E o que é o corpo e a alma de um ente qualquer da espécie humana: isto é, que os corpos são verdadeiramente habitações daquelas almas que a Deus apraz fazer habitá-los, e que por isso mesmo todos são iguais perante Deus!
REI Mas quem foi no Império do Brasil o autor da descoberta, que tanto ilustra, moraliza e felicita – honrando?
MINISTRO Um homem, Senhor, predestinado sem dúvida pelo Onipotente para derramar esta luz divina por todos os habitantes do Globo que habitamos.
REI Mas quais os seus princípios, ou os de sua vida?
MINISTRO É filho de um professor de primeiras letras; seguiu por algum tempo o comércio; estudou depois, e seguiu por alguns anos a profissão de seu Pai, roubado-lhe pela morte, quando contava apenas de 9 a 10 anos de idade. Durante o tempo do seu magistério, empregou-se sempre no estudo da História Universal, da Geografia, da Filosofia, da Retórica – e de todas as outras ciências e artes que o podiam ilustrar. Estudou tãobém um pouco de Francês e do4 Inglês; não tendo podido estudar também5 – Latim, conquanto a isso desse começo, por causa de uma enfermidade que em seus princípios o assaltou. Lia constantemente as melhores produções dos Poetas mais célebres de todos os tempos; dos Oradores mais profundos; dos Filósofos mais sábios e dos Retóricos mais brilhantes ou distintos pela escolha de suas belezas, de suas figuras oratórias! Foi esta a sua vida até a idade de trinta nos6.
REI E nessa idade o que aconteceu? Pelo que dizes reconheço que não é um homem vulgar.
MINISTRO Nessa idade, informam-me... isto é, deixou o exercício do Magistério para começar a produzir de todos os modos; e a profetizar!
REI Então também foi ou é profeta?
MINISTRO Sim, Senhor. Tudo quanto disse que havia acontecer7, tem acontecido; e se espera que acontecerá!
REI Como se chama esse homem?
MINISTRO Ainda não vos disse, Senhor, - que esse homem viveu em um retiro por espaço de um ano ou mais, onde produziu numerosos trabalhos sobre todas as ciências, compondo uma obra de 400 páginas em quarto, a que denomina E... ou E... de... E aí acrescentam que tomou o título de Dr. C... S... – Por não poder usar o nome de que usava – Q... L..., ou J... J... de Q... L...8, - ao interpretar diversos tópicos do Novo Testamento de N.S. Jesus Cristo, que até aos próprios Padres ou sacerdotes pareciam contraditórios!
REI Estou espantado de tão importante revelação!
MINISTRO Ainda não é tudo, Senhor: Esse homem era durante esse tempo de jejum, estudo, e oração – alimentado pelos Reis do Universo, com exceção dos de palha! A sua cabeça era como um centro, donde saiam pensamentos, que voavam às dos Reis de que se alimentava, e destes recebia outros. Era como o coração do mundo, espalhando sangue por todas as suas veias, e assim alimentando-o e fortificando-o, e refluindo quando necessário a seu centro! Assim como acontece a respeito do coração humano, e do corpo em que se acha. Assim é que tem podido levar a todo o mundo habitado, sem auxílio de tipo4 – tudo quanto há querido!
REI Cada vez fico mais espantado com o que ouço de teus lábios!
MINISTRO É verdade quando vos refiro! Não vos minto! E ainda não é tudo: Esse homem tem composto, e continua a compor, numerosas obras: Tragédias; Comédias; poesias sobre todo e qualquer assunto; finalmente, bem se pode dizer – que é um desses raros talentos que só se admiram de séculos em séculos!
REI Poderíamos obter um retrato desse ente a meu ver tão grande ou maior que o próprio Jesus Cristo!?6.
MINISTRO Eu não possuo algum; mas pode se encomendar10 ao nosso Cônsul na cidade de Porto Alegre, capital da Província de São Pedro do Sul, em que tem habitado, e creio que ainda vive.
REI Pois serás já quem fará essa encomenda!
MINISTRO Aqui mesmo na presença de V.M. o farei. (Chega-se a uma mesa, pega uma pena e papel, e escreve:)
“Sr Cônsul de...
De ordem de Nosso Monarca, tenho a determinar a V.Sa. que no primeiro correio envie a esta Corte um retrato do Dr. Q... S... do maior tamanho, e mais perfeito que houver.
Sendo indiferente o preço.
O Primeiro Ministro
Doutor Sá e Brito”11
Corte de..., maio 9 de 1866.
(Fechou,12 depois de haver lido em voz alta; chama um criado; e manda por no correio – para seguir com toda a brevidade, recomendando.)

ATO SEGUNDO

A RAINHA E SUAS DAMAS (entrando) – Não é esta, Senhor (para o Rei) a primeira vez que sabendo haverdes querido encadear ou condenar à morte homens a quem julgo inocentes, venho perante vós impetrar o seu13 perdão! Chegou ao meu conhecimento que desconfiastes14 da fidelidade de vossos maiores e mais sábios Amigos, Henrique e Gil Gonzaga! É por estes sábios vassalos, e que tantas vezes têm ocupado os mais importantes cargos do Estado, que vos venho pedir; é a liberdade, ou não perseguição de suas pessoas que desejo!
REI Bem conheço, Senhora, o interesse que tomais em tudo quanto diz respeito à minha, à vossa e à felicidade do Estado que por herança ou Vontade Divina – governo: ora com sábios conselhos; ora com vossas felizes lembranças; ora com as mais justas – vossas reflexões! Estais portanto servida, Senhora, em vosso pedido; mesmo que o não fizésseis, a conversação que acabo de ter com um dos nossos mais distintos políticos, e atualmente na primeira pasta do Governo, seria bastante para perdoar a esses, de quem tive denúncia de que conspiram contra o nosso Governo!
RAINHA Quanto me apraz, Senhor, ouvir de vossos lábios, doces e salutares palavras! Estou tranquila, e volto feliz aos trabalhos em que sempre me costumo ocupar! (Para o Ministro:) Senhor Ministro, continuai com vossos sábios conselhos a ilustrar vosso Grande Rei, e contai sempre com a proteção de vossa assaz afetuosa Rainha! (Sai com as Damas.)
GUARDAS (entrando) – Senhor! Senhor! (Fatigados e cheios de temor) Aproximam-se de nossas praias alguns vasos de guerra com bandeira de uma Nação com que estamos em guerra! Houveram15 alguns tiros entre os de guerra Nacionais e esses que se aproximam de nossa barra: é portanto mister por tudo em armas para repelir a audaz invasão!
REI (para o Ministro) – É preciso darem-se as mais terminantes ordens a fim de que não sofra a cidade o menor mal! Escrevei já as seguintes ordens para o General comandante da Guarnição: (o Ministro senta-se e escreve) De ordem de S.M. nosso Rei, determino a V.Exa. que imediatamente ponha em armas, e pronta para repelir qualquer tentativa estrangeira, toda a tropa que faz a guarnição desta cidade! Mande tocar tambores pelas ruas para que se reuna não só toda a Guarda Nacional ativa, como também a reserva, dividida toda a tropa em colunas por todo o litoral da cidade, principalmente por suas praias mais vulneráveis, ou despidas de Fortalezas! (O Rei entrega o ofício a um, sai acompanhado de Guardas e volta imediatamente.)
MINISTRO (para outro) – Parte imediatamente (depois de haver feito outro ofício), leva este à Fortaleza da Laje16; dizei17 ao respectivo comandante que igual resolução comuniquei a todos os outros comandantes! (Sai o Guarda. [O Ministro para o Rei:) Peço licença a V.M. para ir em pessoa dar as mais providências que em tão melindrosas circunstâncias são necessárias.
REI Vai, e não te demores a vir dar-me parte do que ocorre; pois se for necessário, quero ir eu mesmo em pessoa, com a minha presença, animar as tropas; exortar o Povo; e fazer, como me cumpre, quanto em mim cabe em proveito dele, e da Nação! (O Ministro parte.). (REI, passeando) Por mais saber que se tenha; por mais previdente que seja um monarca, por mais benefícios que derrame sobre seus Povos, e mesmo sobre os estrangeiros, com sua ciência e com seu exemplo; sempre lhe sobrevem males inevitáveis, que o dever, e a honra, e a dignidade obrigam a repelir! E às vezes com que dureza ele é obrigado a feze-lo! Com que dor em seu coração ele prevê os numerosos cadáveres juncando os campos da batalha! Céus! Eu estremeço, quando vejo diante de meus olhos o horrível espetáculo de um açougue de homens! E se fossem só estes os que perecem; mas quantas famílias desoladas! Quantas filhas sem pai; quanta orfandade!... Quanto pesa o cetro na destra daquele que o empunha com os mais inocentes desejos; com as mais sãs intenções! (Tomando um aspecto resoluto.) Tudo isto é verdade; mas quando a Pátria periga! Quando o inimigo audaz se atreve a insultá-la; quando pode tudo gemer, se o Rei fraquear; não deve ele reflexionar sobre as consequências; tem uma única resolução a tomar: Ligar-se ao Povo, ao Estado ou à Nação; identificar-se com eles, como se fora um só Ente, e debelar aquele, - sem poupança de forças, dinheiro, e tudo o mais que possa concorrer para o mais completo, e glorioso triunfo! Vamos pois em pessoa dar todas as ordens, dispor tudo, e expor se for necessário este peito às balas; este coração ao ferro insultante! Guarda! Prepara-me um dos melhores cavalos em que eu cinja esta espada.
GUARDA Pronto, Senhor. (Sai.)
REI (veste a sua farda de General, depois de haver despido a capa com que se achava, e parte apressadamente. Ao sair, ouve um tiro de peça; desembainha a espada, dizendo:) São eles! (e segue.)
RAINHA (acompanhada das Damas) – Não sei que mau influxo, destino, ou planeta, acompanha, guia, e muitas vezes transtorna as mais sábias administrações do Estado! Por quão pouco tempo gozam estes daquela paz que os tranquiliza e felicita! Daquele progresso que a todos eleva; que a todos anima; que a todos enche de bens, e de venturas! Havia ainda tão pouco tempo que a Providência divina nos havia dado o triunfo contra os inimigos internos que pretendiam debelar-nos; e quando acaba de tranquilizar os nossos corações, envia-nos talvez a mais cruel guerra estrangeira! Enfim, como não há mal algum, que não traga algum bem, devemos contar e esperar que este, como todos os outros, nos felicitará. (Ouvem-se numerosos tiros de peça e de fuzilaria. A Rainha, para as Damas:) Enquanto, Damas, os nossos canhões marítimos destroem os nossos inimigos, vamos desta janela animar as nossas tropas de terra com nossa presença, a fim de que se houver algum desembarque, eles conheçam que seríamos capazes de os acompanhar com uma arma em punho! (Aproximam-se de uma janela.)
UMA DAS DAMAS V.M. vê? Lá se incendeia um vaso inimigo! Lá caiu um mastro de uma galera!
A OUTRA Ih!... Como a metralha varreu o convés daquela nau! Se continua assim, deste instante a duas horas, está o combate terminado, triunfando as nossas armas!
RAINHA Vocês vêem as tropas que estão desembarcando lá naquela ponta de península Anglicana?18
AS DAMAS Vemos; vemos! Que bicharia! Parecem corvos, ou nuvens de outros bichos! E quem sabe se as nossas ainda não viram esse desembarque!? Seria bom avisá-las! É lugar algum tanto escondido. Convém mandar saber!
RAINHA Dá cá o meu apito!
CRIADO (dando uma espécie de trombetinha) – Eis, Senhora.
RAINHA (apita; um soldado da guarda imperial ou real responde com um toque de corneta; ela torna a apitar; ele fala.) – Corre; voa onde está o Rei e dize-lhe que desembarcaram tropas inimigas na península! (O Guarda parte a todo o galope. A Rainha, olhando por um óculo, e muito atentamente:) Ainda agora é que reparo! A fumaça não me deixava ver bem! Os nossos vasos (dois) partem cheios de tropas para o lugar do desembarque! Numerosas lanchas os acompanham; daqui por cinco minutos, deve estar toda a tropa inimiga debelada! Embalde os traidores procuraram uma posição tão importante para destruir-nos... Serão destruidos e completamente aniquilados! Como saltam cabeças, pernas, braços pelos ares! Que carnificina horrível se observa!? Como se matam; como se destroem entes humanos!
UMA DAS DAMAS V.M. vê? Lá vem o Rei a galope! Seu cavalo vem banhado de suor; seu rosto é carmesin! Sua espada, ainda desembainhada, vem tinta de sangue! Céus! Quão grande deve ser o triunfo conquistado hoje por nossas felizes armas!
REI (entrando banhado em sangue e suores; para a Rainha) – Senhora, mandai-me vir outro fardamento limpo para mudar.
RAINHA Entremos nesta câmara. (Entram, e passados alguns minutos, ele se apresenta com nova frarda, calças, etc.)
REI Adeus! Volto ao combate; e juro-vos que antes de por-se o sol, não ficará um soldado inimigo em território nosso. (Parte).
RAINHA Deus abençoe os nossos projetos; e proteja os nossos esforços! (Acompanha-o até à porta; voltam à cena [a Rainha e as Damas]).
UMA DAS DAMAS São horas, minha Senhora e Rainha, de tomar os alimentos de costume com que reparais as forças que gastais em minha, e em utilidade de todos os vossos criados.
A OUTRA Sim; até se não fora hoje um dia tão extraordinário, por certo teríamos faltado a um dos nossos mais importantes deveres. Pois o relógio marcou já uma hora da tarde; e o que agora oferecemos, devia ter sido apresentado a V.M. ao meio dia!
RAINHA Eu não trato, nem tenho disposição, ainda, disso; vamos. (Saem.)

ATO TERCEIRO

REI (Distribuindo prêmios aos numerosos guerreiros que o auxiliaram no triunfo dos combates; conversando ora com um, ora com outro) – Eis, Senhores, a recompensa daqueles, que sabem cumprir bem seus deveres, defendendo os interesses da Pátria, e com eles suas próprias fortunas. Estes recebem o saboroso prêmio de suas fadigas; a recompensa de seus trabalhos. Assim como os usurpadores recebem a morte, e tudo o mais que os pode inutilizar e destruir, quando tentam roubar, matar, ou de qualquer outro modo apossar-se, e fruir os bens que só a outrem pertencem, que só a outrem é permitido gozar! (Pegando uma medalha, e pendurando ao peito de um oficial-general:) Eis como revelarei ao Mundo a tua coragem e valentia. (Pondo outra em outro;) Eis com que despertarei no espírito de vossos concidadãos, a lembrança de milhares de cadáveres, com que a meu lado fizestes juncar o campo da19 batalha. (Pondo em outro:) Eis a prova mais evidente de meu amor por aqueles que me auxiliam no mais importante cargo que se pode exercer sobre a Terra – o de governar os Povos, bem como do reconhecimento de vossos raros merecimentos! (Para outro:) É quanto basta para que o Mundo vos olhe com respeito; vossos Irmãos de armas com prazer, se não com emulação. (Pegando em umas caixinhas:) As gratificações que dentro encontrardes (dando a um dos oficiais) deveis cada um de vós entregar aos oficiais superiores e subalternos, que debaixo do meu e do vosso comando praticaram atos da maior bravura e valor. Para os soldados, outras distinções serão feitas, que atestam por toda a sua vida seus meritórios serviços; a recompensa da Pátria; e o afeto e gratidão do Rei! Transmiti-lhe20 entretanto este apertado abraço que a todos vós dou. (Abraça os quatro oficiais.)
ELES (beijando a mão) – Gratos e reconhecidos aos altos, nobres e elevados sentimentos de V.M. protestamos perante Vós, Deus e as Leis, (arrancando um pouco as espadas) desembainharmos... (arrancando todas) estas espadas e com elas – defender-vos e a Nossa mais que todas virtuosa Rainha, fazendo cair cadáveres quantos se lhes opuserem21; ou cairmos por terra banhados em nosso próprio sangue. (Fazem profunda reverência, e saem.)
RAINHA (e um pouco depois as Damas, entrando apressadamente e atirando-se nos braços do Rei) – Meu querido esposo, quanto me fizeste22 pensar sobre a tua existência, sobre o teu futuro! Sobre a paz e felicidade do nosso Reino! (Desprendendo-se mui devagar de seus braços:) Sim, caro amigo! Quando milhares de feras tentavam lançar-nos talvez fora de nossos territórios [e] deles se apossarem, destruir nossos bens, aniquilar nossa Pátria e fazerem destarte a desgraça geral - não era para menos que para sentir-se o maior receio por tantos males de que nos achávamos ameaçados. Felizmente houve um triunfo completo. Os mares repletos de cabeças, de corpos que boiavam dos nossos inimigos, como se uma peste houvesse destruído a vida de milhares de peixes, como algumas vezes havemos observado. Na península em que tentaram um desembarque, eram tantos que bem se podia dizer que era um matadouro público de carneiros para alimentar uma grande cidade. Felizmente, viveremos, continuaremos a viver tranquilos e felizes!
REI É tudo isso verdade, minha muito querida esposa. Agora, porém, só nos cumpre continuar a velar sobre quanto diz respeito aos interesses públicos d’outra ordem. Eu continuarei a pensar; a meditar; a estudar; a cogitar – quanto possa fazer a felicidade dos homens. Tu que és mulher, de igual modo procederás a respeito das de teu sexo. Combinaremos depois, e todos os dias por duas horas pelo menos de cada um, sobre tais assuntos; o que for julgado melhor, isso se porá em prática.
RAINHA Com muito prazer vos acompanharei em vosso modo de pensar e futura disposição. São horas de descanso, não quereis acompanhar-me?
REI Tenho ainda alguma cousa a fazer nesta sala. Não estou bem certo do que é; porém sei que me falta não sei o quê.
RAINHA Vede o que é; e se eu vos posso auxiliar.
REI Não me recordo; iremos portanto dar um passeio ao jardim, e depois se me lembrar voltarei. Ah! Agora me lembro: é o rascunho da participação que cumpre fazer a todos os governadores que nos auxiliam em nosso importante Governo. (Senta-se; pega a pena, e escreve:) “Meus muito amados súditos e Governadores das diversas Províncias do meu importante Reino! Participo-vos, e sabei que quase inesperadamente fui surpreendido por numerosos traidores, ladrões e assassinos, mas que em um dia, hoje cercado dos meus generais e dos mais valentes, denodados soldados, obtive o mais completo triunfo sobre eles. É sempre a Providência Divina que auxilia nossas Armas e que, se por alguns momentos, como para experimentar a nossa crença, nos envia alguns flagelos, estes desaparecem logo, como as sobras da noute23 aos raios da loura aurora. Publicai este fato glorioso de nossos concidadãos; de nossa fé; de nossa religião; de nossa moral; e de nossa valentia. E conservai-vos, como sempre, no desempenho tão honroso, quão importante do Governo que vos conferiu – o vosso Rei. Q... S..., - M24 – Palácio das Mercês, abril 9 de 1866.”
O REI E A RAINHA (para o público) – Sempre a Lei, a Razão e a Justiça triunfam da perfídia, da traição e da maldade!

Desce o pano, e termina o 3o ato, e com ele a comédia.

Produzido em 15 de maio de 1866, por José Joaquim de Campos Leão Qorpo-Santo, no beco do Rosário, em Porto Alegre, sobrado por cima do número 2125.
NOTAS
1. O autor não relacionou todas as personagens. Acrescentamos, porém, os nomes omitidos. A propósito, ver nota 25. Respeitamos a forma do texto: Matildes.
2. No texto: destes.
3. Embora pouco empregada, pode abonar-se esta regência com exemplos extraídos de bons autores.
4. Assim no texto.
5. Neste período aparecem as duas formas – tãobém e também.
6. É curioso o tom messiânico desta fala, tanto mais quanto a pessoa referida é o próprio Q.S., conforme veremos mais adiante. Ver prefácio a este livro, no qual examinamos esse e outros aspectos da complicada personalidade do autor.
7. Sobre esta regência, ver Mateus e Mateusa, nota 27.
8. Iniciais do nome, acrescido do sobrenome, escritos segundo o sistema fonético adotado pelo autor: Jozé Joaqim de Qampos Leão.
9. Como se vê, a exacerbação mental de Q. S., nesse diálogo, chega à mais rematada loucura.
10. No texto: pode se encomendar.
11. Na relação das personagens, o Ministro tem o nome de Eleutério; aqui, já aparece como o Doutor Sá e Brito. Existiam no Rio Grande do Sul, em 1866, vários membros ilustres dessa família. Aqui, parece tratar-se do Dr. José de Sá Brito, líder da Maçonaria e autor de dramas que foram representados em Porto Alegre. Ver Guilhermino Cesar, História da Literatura do Rio Grande do Sul, P. Alegre, Editora Globo, 1956, p. 264.
12. Está: Feichou.
13. Assim no texto.
14. No texto: desconfiasteis
15. Assim no texto, talvez com a intenção de vincar o status social de quem fala.
16. A cena se passa inicalmente num reino hipotético, que tinha representação consular em Porto Alegre. Agora, já estamos na sede do então Império do Brasil, protegida pela Fortaleza da Laje. A confusão que o autor introduz nesta peça é de molde a fazer dela um perfeito exemplar do nonsense teatral.
17. Conforme deixamos anotado no prefácio, a mistura de tratamento é a regra nas peças do autor. Ocorre o mesmo com o fundador do teatro brasileiro, Martins Pena. Os modernos revelam a mesma tendência.
18. Assim no texto.
19. O autor prefere sempre o da por de nesta locução.
20. Lhe por lhes, como ainda era corrente no princípio do século XIX.
21. Está quantos se lhes oporem
22. Está fizesteis
23. No texto o ditongo ou é usado de preferência sobre o oi. Assim, Q.S. escreve sempre, invariavelmente: Couza, noute.
24. Qorpo-Santo, ministro – é o que significam essas iniciais. O pobre autor, no seu desarranjo mental, tira involuntariamente partido de toda essa confusão, fazendo-nos rir.
25. Segue-se no texto a seguinte nota: Faltou declarar, nos personagens, os quatro oficiais premiados.

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